Maioria das emendas sugerem alterações ou inclusões que aumentam mais ainda os custos da eletricidade. 366m3d
Nos anos 1970, um programa de TV norte-americano (“Let’s make a deal” – Vamos fazer um acordo, em tradução literal) tinha como seu quadro mais badalado um paradoxo probabilístico estudado desde o século XVIII. Esse problema ficou popularmente conhecido como o “paradoxo das três portas” ou “paradoxo de Monty Hall”, em homenagem ao apresentador do programa. Mas, de fato, é um caso especial do teorema de Bayes ou da probabilidade condicionada, demonstrado por Thomas Bayes antes de 1753.
Monty Hall desafiava alguém (P) a decidir em qual de três portas estaria um prêmio (de R$ 500 mil, por exemplo). Se P escolhesse a porta A, o apresentador abriria a porta B (ou C), onde estava um bode, e perguntava se o desafiado queria trocar a porta escolhida. A resposta quase sempre era não. No raciocínio de P, se o prêmio
não estava em B, só restavam A ou C e, por isso, sua chance era 50%.
Mas essa lógica, apesar de muito intuitiva, não está correta. Se P decidiu por A, a chance de acertar é 33%, mas só ganha o prêmio se fez a escolha certa desde o início. Ocorre que, no início, a possibilidade de erro é de duas portas em 3 ou 66%. Ou seja, depois que o apresentador abre uma das portas sem o prêmio, a probabilidade de 66% se concentra na única porta restante que não tem um bode. É por isso que faz sentido alterar a escolha.
Monty Hall apresentava outra opção para seu convidado. Além de perguntar se P mudaria a escolha, lhe propunha receber R$ 150 mil para não continuar no jogo. Era uma verdadeira emboscada. Como a probabilidade de escolher a porta certa teria ado para 66%, para desistir do jogo a proposta deveria ser de R$ 330 mil, ou R$ 250 mil se válida a intuição de P. E o detalhe é que, na imensa maioria das vezes, a mesma pessoa que não topava trocar a porta escolhida, aceitava os R$ 150 mil. E a plateia, surpreendentemente, ficava revoltada quando isso não acontecia.
Dia 23 de maio o governo editou a Medida Provisória (MP) 1.300. Como afirmei em redes sociais mesmo antes da versão oficial, a MP tem mais pontos positivos que negativos, mas o governo não teria força política para aprová-la. Agora, conhecidos os detalhes do texto, complemento: a MP é boa, mas tem uma série de emboscadas
e, aprovada ou não, aumentará a tarifa de energia – e será coisa de dois dígitos.
A Medida Provisória cria uma nova tarifa social, um dos seus pontos positivos, que beneficiará 17 milhões de famílias muito pobres. Essa modalidade de política pública, que será custeada com dinheiro dos demais consumidores residenciais, tem sido rotineiramente rotulada de eleitoreira. Ok. É do jogo. E é desleal quando o
reparo vem de lobbies de subsidiados.
Para compensar o aumento de custos desses “demais consumidores”, a MP acena com a abertura total do mercado a partir de 2027. A tarifa para esse subconjunto de clientes, depois da abertura, pode reduzir em 25%. É uma compensação que parece atrativa, como as propostas de Monty Hall.
A nova tarifa social, com custo anual de R$ 3,6 bilhões, tem 45 dias, contados da publicação da MP, para entrar em vigor. Por isso, mesmo que a MP não seja aprovada no Congresso, o aumento de 1,6% na tarifa já é coisa certa. Basta que o poder concedente emita um decreto para regulamentar o tema.
Sucede que a compensação para os demais consumidores, que pagarão a conta, só viria em 1o de dezembro de 2027, com a ampliação do mercado livre, e depende da aprovação da MP. Essa é primeira emboscada, com todo jeito de trapaça, como se Monty Hall colocasse um burro atrás de cada porta.
E tem coisas piores. Como a MP sinaliza a redução de subsídios para a indústria, com eficácia a partir de janeiro de 2026, há, desde abril ado, uma corrida desenfreada para registrar contratos de compra de energia até dezembro de 2025. Entre 5.000 e 10.000 MW podem surgir dessa mediocridade regulatória. Mais R$ 6 bilhões por ano na minha e na sua conta de luz. E montante igual ou maior pode vir dos “jabutis” que transferem para terceiros os custos de uma ladainha sofisticada chamada de “curtailment”.
A MP, como esperado, recebeu uma enxurrada de 600 emendas. Selecionei aleatoriamente e li mais da metade delas. Não menos que 85% sugerem alterações ou inclusões que aumentam mais ainda os custos da eletricidade.
É, assim, uma armadilha atrás da outra, concatenadas por diferentes lobbies, todos com um só e vergonhoso objetivo: individualizar os benefícios e socializar os custos. Se 50% dessas emendas forem aprovadas, mais de R$ 25 bilhões ao ano serão adicionados à conta de luz. Assim, somados à nova tarifa social, ao curtailment e à
corrida dos grandes consumidores, chega-se a algo entre 12 e 16% de aumento na tarifa – sendo bem otimista. E parte desse aumento virá mesmo que a MP não seja aprovada.
Há hoje um problema iminente, que é a confiabilidade do sistema elétrico. O governo deveria priorizar a reserva de capacidade, em lugar da boa, mas improvisada Medida Provisória.
Um fato interessante, até inédito, surgiu das 576 emendas. O Senador Mecias de Jesus, autor da Emenda 541, e outras na mesma linha, propõe limitar os subsídios de 2026 ao total praticado em 2024. É um sopro de lucidez, e único no universo das 600 emendas.
Acompanhei, sem saber o que dizer, às ofensas perpetradas contra a ministra Marina Silva numa comissão do Senado. Viu-se ali o uso da emboscada para achincalhar e degradar. De todas as agressões, “ponha-se no seu lugar”, dita por um branco e no tom utilizado, é a mais humilhante. É muito doloroso o que representa essa expressão para uma pessoa preta. É o mesmo que “seu lugar é na senzala”. É o racismo implícito praticado no Senado, e por um senador.
Não sei de onde Marina retirou tanta força para enfrentar aquelas pessoas mal-educadas e cruéis, de tocaia atrás da porta do racismo.
Edvaldo Santana é doutor em Engenharia de Produção e ex-diretor da Aneel e colunista do Valor.
Imagem e Conteúdo por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/mp-do-setor-eletrico-e-boa-mas-tem-emboscadas.ghtml
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